Em psiquiatria e em psicologia prefere-se falar em transtornos
ou perturbações ou disfunções ou distúrbios psíquicos e
não em doença; isso porque apenas poucos quadros
clínicos mentais apresentam todas as características de uma doença no sentido
tradicional do termo - isto é, o conhecimento exacto dos mecanismos envolvidos
e suas causas explícitas.
O conceito de transtorno, ao contrário, implica um comportamento
diferente, desviante, "anormal”.
O que é então a anormalidade?
O conceito de anormalidade só é compreensível em relação a uma
norma; mas nem toda variação em relação a uma norma adquire caráter patológico. Assim uma pessoa superdotada ou um
criminoso estão ambos "fora da norma", sem que no entanto seu estado
tenha um caráter patológico. Assim, para
se compreender o termo transtorno é necessário ter-se presente quais normas são
relevantes para essa definição:~
1. Norma subjetiva: a
própria pessoa sente-se doente. No entanto, esta norma não é suficiente
para uma definição, porque ela envolve uma perceção subjetiva do problema, que
pode diferir de uma perceção externa, objetiva: além dos casos em que as duas
perspectivas estão de acordo, há casos em que a pessoa está subjetivamente
doente, mas esse estado é externamente não observável, ou vice-versa;
2. Norma estatística: a
norma é dada pela frequência do fenômeno na população. Assim, todas as pessoas
que estão acima ou abaixo de um determinado valor de corte estão fora da norma.
No entanto essa norma não leva em conta o valor dado às características levadas
em conta. Assim uma pessoa que nunca teve cáries está tão fora da norma como
uma pessoa que têm muitíssimas - aqui se vê também seu limite;
3. Norma funcionalista: aqui
a norma é ditada pelo prejuízo das funções relevantes. Assim, se alguém não
consegue mover a mão está fora da norma, porque a mão não pode cumprir sua
função de pegar. Enquanto a norma funcional é muito importante para os
transtornos e doenças somáticas (ou corporais), não o é sempre no caso dos
transtornos mentais, porque a função nem sempre é objetivável. Assim a
sexualidade possui inúmeras funções - reprodução, prazer, comunicação,
interpessoal… - de forma que se torna difícil definir os transtornos nessa
área;
4. Norma social: aqui
o transtorno é definido a partir de normas e valores definidos socialmente. A
perspectiva da etiquetação (labeling) de Scheff postula o
seguinte desenvolvimento para tais normas: (a) Desvio primário - a pessoa
desrespeita um determinada norma social e isso pode levar a duas reações: ou o
comportamento é "normalizado" (através de tolerância, racionalização,
discussão)e assim o conflito é solucionado, ou o conflito não se soluciona de
maneira positiva e a pessoa recebe uma "etiqueta" (ex. um
diagnóstico, uma condenação jurídica…) e recebe assim uma atenção especial.
Esse estigma leva a um (b)desvio secundário - a pessoa, em reação à
etiquetação, começa a comportar-se de maneira diferente em conformidade com o
novo papel social recebido: a pessoa começa a
comportar-se de acordo com a etiqueta recebida. Esse é um dos grandes problemas
ligados a todos os tipos de classificação e diagnóstico.
5. Norma dos especialistas: esta
é uma forma especial de norma social, definida por uma categoria especial de
pessoas - os especialistas (médicos, psicólogos, etc.). Como as normas sociais,
também estas estão sujeitas a uma certa dose de arbitrariedade. Os atuais sistemas
de classificação (DSM-IV e CID-10) são formas especiais de normas de
especialistas que têm por fim reduzir os perigos dessa arbitrariedade.
Classificação dos transtornos mentais
O sistema de Jaspers
(1913)
Dentre os sitemas de classificação dos transtornos mentais o de Jaspers
(1913) recebe, pela sua importância histórica, um lugar preponderante. Esse
sistema é triádico, por diferenciar três formas de transtornos mentais:
1. Doenças somáticas
conhecidas que trazem consigo um transtorno psíquico, em seus subtipos:
- Doenças
cerebrais;
- Doenças
corporais com psicoses sintomáticas (ex. infecções, doenças endócrinas,
etc.);
- Envenenamentos/Intoxicações
(Álcool, morfina, cocaína etc.).
2. Os três grandes tipos
de psicoses endógenas (ou seja, transtornos psíquicos cuja causa corporal ainda
é desconhecida):
- Epilepsia genuína;
- Esquizofrenia,
em seus diferentes tipos;
- Distúrbios
maníaco-depressivos.
3. Psicopatias:
- Reações
autônomas anormais não explicáveis por meio de doenças dos grupos 1 e 2
acima;
- Neuroses
e síndromes neuróticas;
- Personalidades
anormais e seu desenvolvimento.
Dois termos desempenham assim um papel preponderante: neurose designa os "transtornos
mentais que não afetam o ser humano em si", ou seja aqueles supostamente
sem base orgânica nos quais o paciente possui consciência e uma percepção clara
da realidade e em geral não confunde sua experiência patológica e subjetiva com
a realidade exterior; psicose, por sua vez,
são "aqueles transtornos mentais que afetam o ser humano como um
todo", ou seja um transtorno no qual o prejuízo das funções psíquicas
atingiu um nível tão acentuado que a consciência, o contato com a realidade ou
a capacidade de corresponder às exigências da vida se tornam extremamente
diferenciadas, e por vezes perturbadas, e para a qual se conhece ou se supõe
uma causa corporal.
Entre as neuroses costumam-se classificar: a perturbação
obsessiva-compulsiva, a transtorno do pânico,
as diferentes fobias, os transtornos de
ansiedade,a depressão nervosa,
a distimia, a síndrome de Burnout,
entre outras.
O tratamento das neuroses e psicoses pode ser feito com um psicoterapeuta, um psiquiatra ou equipes de profissionais
de saúde mental. As equipes incluem sempre psicólogos e psiquiatras, e podem incluir
também enfermeiros, terapeutas ocupacionais,
musicoterapeutas e assistentes sociais, entre outros.
Essa forma de classificação, apesar de muito utilizada ainda
hoje, tem alguns problemas sérios: (a) a classificação limita o transtorno
mental à pessoa (não correspondendo às exigências de uma análise
bio-psico-social), (b) a diferenciação entre neurose e psicose endógena não é
sempre tão clara como parece à primeira vista e (c) ambos os conceitos (neurose
e psicose) estão ligados a uma etiologia psicanalítica dos transtornos mentais,
tornando-os de utilidade limitada para profissionais de outras escolas1 (ver abaixo "Etiologia: A
perspectiva psicoanalítica").
Os sistemas atuais de classificação
O uso de sistemas de classificação para os transtornos mentais possibilita diagnósticos
psiquiátricos precisos, fornecendo uma base comum para o diálogo
entre os psiquiatras e psicoterapeutas de diversas linhas. Os dois
sistemas atualmente em uso - a Classificação
Internacional de Doenças (CID), da Organização
Mundial de Saúde e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM, sigla em inglês), da Associação
Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association -
APA) - prescindiram dos termos "neurose" e "psicose", salvo
em raros casos, para os quais não havia termo mais apropriado. A CID é um
sistema internacional, enquanto o DSM, tem sua importância ligada sobretudo à
pesquisa. Apesar das diferenças, ambos os sistemas têm uma série de
características em comum:
- O
princípio da comorbididade, ou seja, uma pessoa pode ter ao mesmo
tempo diferentes transtornos;
- A multiaxialidade,
ou seja, a descrição do transtorno se dá em diferentes eixos, cada um dos
quais se referindo a um aspecto diferente (a CID não é originalmente
multiaxial, mas um tal sistema foi proposto);
- O
sistema de diagnóstico operacional, ou seja, um diagnóstico é
descrito com base em uma série de elementos semiológicos, sintomas e ou
sinais, que devem estar presentes ou não por um período de tempo
determinado. Discussões teóricas sem base empírica sobre a etiologia são
deixadas de lado.
Para uma descrição detalhada desses sistemas, ver: diagnóstico
psiquiátrico, CID-10 Capítulo V: Transtornos mentais e comportamentais
e Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais.
A CID possui ainda um sistema multiaxial especial para o diagnóstico
infanto-juvenil.
Digno de menção é o trabalho do Grupo OPD (Arbeitskreis OPD) que
publicou o "Diagnóstico Psicodinâmico Operacionalizado" (OPD, sigla
em alemão) que oferece uma classificação de diferentes aspectos psicodinâmicos
em complementação aos outros dois sistemas.
Estudos recentes estimam que entre 32% (Robins & Regier, 1991) e 65%
(Wittchen & Perkonigg, 1996) dos adultos sofreram em algum momento da vida
de um transtorno mental. A grande diferença entre as estimativas dos dois
trabalhos devem-se às dificuldades metodológicas envolvidas nesse tipo de
trabalho. No entanto a literatura parece unânime em afirmar que os transtornos
mais frequentes são as diferentes formas de fobia
(9,2-24,9%), sobretudo as fobias específicas, a fobia social e a agorafobia; o abuso e a dependência de
substâncias químicas (17,7-26,6%), sobretudo álcool; e os transtornos afetivos
(5,5-19,8%), sobretudo a depressão.9 Outros transtornos são muito menos
comuns.
Ao contrário do que se pensa normalmente, os transtornos mentais são
relativamente frequentes na população infanto-juvenil: entre 15% e 22% da
população apresenta alguma forma de distúrbio nessa faixa etária, sobretudo as
fobias, abuso e dependência de substâncias e transtornos afetivos. Além disso
há indícios de que a frequência dos transtornos mentais não aumenta com a
idade, com exceção dos transtornos da cognição causados pela demência.
Os trantornos afetivos, os devidos à ação de substâncias psicoativas e os
transtornos neuróticos (ou seja, ligados ao medo) costumam se manifestar pela
primeira vez nas três primeiras décadas de vida. Enquanto a maioria desses
transtornos aparece ais frequentemente a partir do fim da puberdade e do início
da idade adulta, as fobias específicas tendem a se manisfetar pela primeira vez
já na infância e na adolescência. Outro fenômeno muito comum é a comorbididade
dos transtornos mentais: um distúrbio costuma vir acompanhado de um ou até mais
transtornos.
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